Há um tempo para viver e outro para morrer.
Sento-me debaixo da chuva miudinha na beira de um passado passeio cibernético e imagino-me o quase-homem loiro.
Reclino-me na lembrança da poltrona vermelha do velho cinema de colégio católico que frequentava quando era menino e lembro a primeira vez que vi o filme Blade runner.
Nessa altura os meus olhos eram tão claros que não podiam ver o que se escondia no voo propositadamente lento da pomba branca com que a cinematografia clássica de Ridley Scott anunciava aquele fim.
— Time do die, disse o gigante, enquanto entregava à liberdade a ave paz que o ligava a uma vida improvável. Era tempo da inocência.
Hoje muitos anos depois, uma geração inteira, sento-me no ponto de fuga desta memória cinematográfica.
Já não vejo o gigante louro de olhos azuis a diluir-se no poema metáfora da inocência. Os olhos de hoje fitam aquela memória ao de longe e contornam-lhe o sentido. Fazem-no como se ela fosse ao mesmo tempo muito nítida, mesmo sendo impossível.
Lembro que o homem loiro era um Replicant, um robô que começou a ser homem quando aprendeu o amor e a liberdade. Uma espécie de Pinóquio passionário que todas as manhãs desperta na alma virgem das crianças e recusa, sem margem de erro, que alguma coisa seja impossível.
Uma música da banda sonora desse filme serviu-me durante muitas horas como pano de fundo para uma série de poemas que dizia na rádio. Quando abandonei o éter nunca mais a ouvi. Tinha ficado muda naquela parte do território irresponsável da juventude.
Mas hoje, sem se fazer anunciar, voltou. A demonstrar que a democrática ditadura dos calendários nem sempre leva a melhor. Até porque nunca é tarde para haver, de novo, uma infância feliz.
— Time to fly.